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Vai ser um pouco difícil relatar tudo o que passei nesses últimos dias, mas tentarei passar um pouco das sensações sentidas ao longo desse trecho que eu classifico como teste para o restante do projeto. Foram mais de 24 horas em movimento, 3 dias, 4 quilos mais magro, 13 cachorros enfurecidos e muito Sol, mas antes de tudo, muita alegria e experiências que só temos quando saímos da nossa zona de conforto para um mundo desconhecido. Não tão desconhecido, pois esse primeiro trajeto eu já realizei dezenas de vezes, de carro, ônibus, caminhão e até de avião, mas nunca de bike.
Guajará Mirim é minha cidade natal e onde ainda reside parte da minha família. Uma cidade pacata, com pouco mais de 40.000 habitantes, que tem sua história entrelaçada com a história de Rondônia e Acre. Aproximadamente 93% território do município é composto por algum tipo de unidade de conservação (terras indígenas e reservas extrativistas e biológicas), o que torna o município especial do ponto de vista do uso dos solos quando comparado a outros municípios de Rondônia (ver mapa). Uma das poucas áreas preservadas do Estado, também favorece a prática de escalada e montanhismo, já que são atividades intimamente ligadas à natureza. As formações geológicas se estendem em suas unidades de conservação, e iremos relatar ao longo dos trechos percorridos. Outra particularidade da cidade a ser ressaltada é a quantidade de bicicletas que circulam por suas ruas.
Guajará poderia ser, sem dúvida, a primeira cidade do país onde a bicicleta seria o meio de transporte oficial, se os governantes começassem a pensar no potencial que a cidade tem para se tornar uma cidade exemplar no que diz respeito ao meio ambiente. E com soluções simples, sem grandes investimentos, incentivando qualquer projeto que tenha esse caráter. Seria mais um atrativo turístico (dentre tantos outros que já existem), pois sua posição geográfica é favorável, sendo uma região de fronteira com a Bolívia, o que atrai o turismo comercial. Mas vamos ao relato do trecho.
Convidei Pedro Fernandes Duarte para me acompanhar no começo desta primeira etapa, por vários motivos. O cara é meu brother, gosta de pedalar, me apoiou e deu várias dicas, além de peças necessárias à viabilidade do projeto. A companhia dele ajudou na quebra da tensão inicial da viagem, onde os testes ainda estão acontecendo. Combinamos de nos encontrar às 5hs da terça (03/06) lá em casa, na sede a AREM (Associação Rondoniense de Escalada e Montanhismo), mas, devido às preparações e o café reforçado, acabamos saindo um pouco mais tarde, aproximadamente às 7hs. Tudo pronto, começamos a pedalada, enfrentando um dos trechos mais desgastantes que é a saída de Porto Velho, que além de muito movimentada, apresenta aclives acentuados e longos. Um bom exercício para começar o dia. Muita água e uma boa prosa foram constantes nesta primeira parte para enfrentar o calor e se acostumar com o equilíbrio da bike, agora toda carregada. Fomos “turistando” mesmo. Umas 3 horas e meia pedalando e conversando, logo chegamos ao Posto da Polícia Rodoviária Federal, no Km 48, onde nos despediríamos. Depois de uns 15 minutos descansando, agradeci a companhia e a parceria, e Pedro voltou, enfrentando aquele calor escaldante. Eu segui viagem, enfrentando o mesmo calor, rumo ao sul, pois ainda queria saber o quanto mais conseguiria pedalar no primeiro dia. Não tinha pressa, mas se conseguisse chegar em Nova Mutum, teria o apoio de um amigo que lá trabalha, o Uendel Reis. E foi isso que aconteceu. No caminho, ainda localizei um setor com alguns blocos de boulders. Nada muito atrativo a primeira vista, mas vale a pena voltar para explorar melhor a área, já que não é tão longe de Porto Velho.
Chegando em Nova Mutum, por volta das 17:30h, procurei localizar Uendel em seu trabalho, e logo fomos para a base de apoio que ele divide com mais dois colegas de trabalho: o Luiz e o Márcio (galera gente fina e batalhadora). Comemos em uma pizzaria aquela noite, o que adiou a primeira refeição que seria preparada com os utensílios da viagem, pois durante o dia, muitas sementes, grãos, frutas e barras de cereais me alimentaram. Fazendo uma retrospectiva do dia, fiquei admirado com a quantidade de gentilezas da maior parte dos motoristas que, além de tentarem me ultrapassar com uma distância segura, quando possível, também acenavam, buzinavam, e até paravam pra conversar, incentivando, oferecendo frutas e água para me motivar na minha jornada. Agradeço a cada um destes que me fez repensar em quantas pessoas boas existem no mundo. Na verdade é a maioria, mas o nosso pré-julgamento nos faz pensar o contrário. Só conseguimos avaliar isso melhor quando nos lançamos fora de nossa zona de conforto, passamos a prestar mais atenção no mundo e lançamos um sorriso como cartão de visitas.
Depois de uma noite de muita conversa com os brothers, acordamos na manhã seguinte e começamos a testar os utensílios de cozinha fazendo um café para nós. Capputtino com tapioca. Faltava um pouco de prática com os novos utensílios, mas conseguimos nos alimentar (rs). A fadiga muscular ainda estava presente, mas a viagem precisava continuar e o Uendel precisava trabalhar. Nos despedimos, e fiquei recolhendo as coisas de volta para os alforjes da Alto Estilo, que simplesmente fecharam como uma luva para o total de equipamento e mantimentos que precisaria na viagem. Voltei a pedalar já era quase 9h, e o Sol já castigava, mas escapei do trânsito da manhã pra a UH de Jirau. E já que para os próximos dias não havia prazos a serem cumpridos, aliviei o pedal. Mais ou menos próximo à hora do almoço, uma surpresa boa. Meus pais, que estavam em Porto Velho e retornavam para Guajará, me encontraram. Conversamos um pouco, eles me deram algumas guloseimas e água, e tentaram me convencer a colocar a bike na carroceria do carro (rs)... Sem êxito. Nem a bagagem deixei eles levarem, pois assim eu estaria “roubando”, e também poderia precisar de algo durante a viagem.
Mais alguns blocos de arenito em um morro próximo a antiga Mutum chamaram minha atenção. Alguns eram até grandes, e de longe, pareciam apresentar escalada, mas nada de extraordinário. Segui viagem... A bike em alguns momentos percorrendo a rodovia rodeada pelas águas do rio Madeira, agora represado. Uma canção me acompanhou naquele trecho de forma reflexiva:
“O homem chega e já desfaz a natureza
Tira a gente põe represa, diz que tudo vai mudar
O São Francisco lá prá cima da Bahia
Diz que dia menos dia vai subir bem devagar
E passo a passo vai cumprindo a profecia
Do beato que dizia que o sertão ia alagar
O sertão vai virar mar
Dá no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão...”
Não vou entrar no mérito das represas aqui. Mas olhando com calma, dá pra ver o tamanho do desequilíbrio causado pelas usinas... Milhares de árvores de terra firme morrendo (além das que já foram cortadas), pois os níveis dos lençóis encharcam agora as suas raízes. O calor e a umidade do ar estão cada vez mais presentes. Entretanto, a paisagem é de ficar admirado e fazer refletir em como podemos modificar tudo em tão pouco tempo. Talvez o maior problema do mundo seja que o homem aprendeu a dominar a natureza antes mesmo de conhecê-la, de aprender mais sobre ela... Todo ato é justificado pelo crescimento econômico.
Outro ponto que começo a observar é a quantidade de piçarra colocada sobre a Rodovia para tapar os buracos causados pela última enchente. A poeira começa a ser constante na viagem. Já chegando próximo ao Castelinho, ocorreu um episódio engraçado. Eu já tinha reparado que os alforjes não são bem vistos por cães, que sempre manifestavam certa agressividade ao me avistar. Desta vez, uma matilha de uns 13 cães me fez pedalar forte, aumentando as doses de adrenalina no sangue... Mas eles logo desistiram de me perseguir quando comecei a gritar feito doido (rss).
Naquele dia pedalei 118 km aproximadamente e acampei após a vila conhecida como Penha, já na BR425, depois de um pôr do Sol marcante. Consegui achar um local para acampar próximo à rodovia, um tanto escondido. O céu estrelado e a lua crescente iluminaram a janta, que quase não ligueia lanterna. Logo notei companhia. Algumas saúvas começaram a aparecer, e vi que estavam trabalhando ali próximo, cortando algumas folhas e carregando. Me afastei um pouco delas e continuei minha refeição. Depois de tudo limpo, cobri a bike e fui descansar. Acordei algumas vezes na noite, mas nada de mais. Apenas estranhando minha nova casa pelos próximos dias. Na aurora do dia, acordei e fui surpreendido com algumas travessuras das saúvas. Elas cortaram minhas meias, meus cadarços e uma camiseta (rs). Fora isso, foi tudo tranquilo. Preparei o café, levantei acampamento sem deixar rastros e segui viagem, agora com pouca água, pois usei na janta anterior e no café, além de lavar a louça. Estava a uns 10km do Araras e a minha esperança era reabastecer os reservatórios de água lá, mas a enchente ainda deixou alguns estragos. Não havia água potável nos poços, pois tudo estava contaminado. Ainda ouvia as pessoas se queixando do descaso das autoridades, mas todos firmes em reconstruir com suas próprias mãos aquilo que perderam.
Segui viagem e logo o GPS ficou sem bateria. Consegui recarregá-lo na ponte do Ribeirão, em uma lanchonete onde descansei na hora mais quente do dia, agora já hidratado. Segui rumo à Nova Mamoré, e avistei três morros distantes da rodovia mas que aparentam ter afloramentos de pedras para escalada. Fotografei e continuei viagem, pois estavam bem distantes. Também vale a pena conferir em outra oportunidade. O planejado era acampar após Nova Mamoré. Depois de comprar pilhas extras para o GPS (que também tem essa opção), segui procurando local para acampar, mas como não há faixa de domínio da rodovia neste trecho, estava complicado achar local. Um rio próximo que a galera usava para banho era uma opção, mas chegando lá, os vestígios da enchente deste ano deixaram o local impossibilitado de acampar, na verdade, de tomar banho, coisa que eu estava precisando, pois na noite passada não rolou também. Decidi seguir adiante até a fazenda de um primo. Chegando na porteira, trancada, e o sol já se despedia deixando a lua aparecer em uma noite muito estrelada. Faltavam 25km para Guajará e resolvi tocar em frente para tomar um banho em casa.
Muitos carros e a rodovia em manutenção reduziram minha velocidade. As lanternas me davam segurança de estar sendo visto e as faixas refletivas dos alforjes aumentavam a visibilidade da minha bike para os motoristas. Não tive problemas com os carros, mas demorei bastante para chegar à Guajará. Exausto, parei na placa de entrada para contemplar a noite maravilhosa e as luzes da cidade. Cheguei na casa de meus pais por voltas das 21h, onde surpreendi todos que só me esperavam no próximo dia. Embora, mãe é mãe, ela estava sentindo... Cheguei marrom, com uns 4 tijolos na boca de tanta poeira (rs)... Acabei não fotografando as paredes de conglomerado na chegada da cidade porque já estava escuro, e fiquei de fazer isso nos próximos dias. O fim de semana foi de curtir a família, descansar, pesquisar rotas e prováveis pontos de escalada na região, além de pedaladas para conferir, sempre tentando presenciar o pôr do sol nesta cidade que simplesmente é lindo.
Encontrei muita gente nesta viagem e, sem dúvida, as perguntas que mais me fizeram foram: De onde vim? E para onde vou? – E estas perguntas eu me faço há algum tempo, pesquiso sobre, e apenas sei que estou aqui só de passagem. Acho que o mundo seria diferente se as pessoas fossem pesquisar realmente sobre suas origens e seus destinos, e não simplesmente acreditassem no que lhe dizem. Lembro do princípio da descrença, uma das bases da conscienciologia: “Não acredite em nada, nem mesmo no que lhe informarem aqui. Experimente. Tenha suas experiências pessoais”.
Esqueci de mencionar que, na sexta-feira, fui convidado pelo Professor Rodolfo e pela Professora Ana para dar uma palestra para os alunos do 5º período de Gestão Ambiental da Unir, sobre a bike como transporte alternativo. Fiquei muito feliz pelo convite e confirmei presença na segunda pela manhã. Logo o convite para assistir a palestra foi estendido para mais 2 turmas do mesmo curso, e um auditório foi liberado para palestra. Foi uma grande experiência, ver todos aqueles universitários, com grande futuro, em uma região promissora para as suas profissões, envolvidos em um tema ascendente em nossa realidade: mobilidade urbana. Guajará tem um grande potencial para ser uma cidade ambientalmente exemplar. E tudo isso foi discutido na palestra com a participação dos acadêmicos. Alguns projetos começaram a se moldar nesse encontro, e espero que rendam frutos para uma cidade tão querida. Agradeço aos professores pela oportunidade e aos acadêmicos pela cooperação e participação.
Queria também agradecer a galera toda que enviou energias positivas, vibrações e orações... Dá pra sentir vocês me empurrando, como se tivesse sempre alguém pisando junto comigo nos pedais... Valeu galera, em breve envio notícias do próximo trecho. Valeu Uendel, Márcio, Luiz e Pedro, pela participação desta etapa do trabalho. Aos que me ligaram, mandaram mensagens e estiveram mais próximos, em especial a Luciana Reis, Leonardo e Fabiane, nosso grupo de buscadores. Valeu galera, lembrei muito de vocês e de nossas reuniões. Me fortaleci com vocês.
Gostaria de agradecer de forma especial a minha família. Meu pai, um cara que me ensinou que os problemas sempre vão existir, que o que precisamos é arrumar a solução para eles. E na maioria das vezes me mostrou como é possível só respirar e pensar. Minha mãe, que é um poço de ternura, sempre tentando mediar conflitos e garantir o bem estar da família, além de se desdobrar em 10 para ser mãe, esposa, avó, governanta, administradora de empresa, estudante e pesquisadora. Sempre auxiliando todos em suas dificuldades. E meus irmãos, juntamente com suas famílias, que sempre estão batalhando para serem ótimas pessoas em um mundo cada vez mais difícil. Eles são minha base e minha inspiração. Se eu sei que tudo é possível, foi porque aprendi com eles. E agradecer aqueles que me acompanharam nesta primeira etapa mesmo de longe, em pensamentos, mas que me inspiram para continuar pedalando. Afinal, “viver é como andar de bicicleta, temos que continuar em movimento para não perder o equilíbrio”.
Guajará Mirim, 09 de junho de 2014.
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